Por Wanderlino Nogueira Neto
Neste ano de 2012, não deveríamos comemorar exclusivamente o 22º aniversário de promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, no Brasil, como fazemos. Esta comemoração deve ser posta num contexto bem maior. Em verdade, o Estatuto precisa ser visto como o produto de algo maior, ou seja, como um resultado de décadas de luta no país pelos direitos humanos, pelo desenvolvimento humano autossustentado e pela verdadeira democracia. Em suma, esse foi realmente um tempo de lutas em favor das necessidades, dos desejos, dos interesses e principalmente dos direitos fundamentais da pessoa humana.
Mais precisamente, daqueles segmentos da população que mais necessitam dessa defesa de direitos, via normativa nacional e internacional, como direitos humanos positivados: as classes trabalhadoras e os grupos mais vulnerabilizados, em função de determinadas condições de exclusão, subalternização e dominação, como por exemplo, mulheres, afrodescendentes, populações indígenas e tradicionais (quilombolas, ribeirinhos amazônicos etc.), pessoas com deficiência, segmentos LGBTT, idosos, jovens e, em especial, crianças e adolescentes.
Em termos didáticos, poderíamos reduzir as forças alavancadoras desse processo histórico no Brasil, a grandes blocos de influências; Isto é, a grandes blocos de pensamentos, de ações, de espaços públicos, de mecanismos estratégicos e de personalidades: (1º) A mobilização dos movimentos sociais e, dentro disso, das expressões organizativas de movimentos conjunturais e de seus militantes; (2º) O pensamento acadêmico, explicitado em teorias científicas novas e em estratégias, táticas e metodologias transformadoras; (3º) As vozes (ainda que isoladas) de determinados agentes públicos do governo, do sistema de justiça e do legislativo, que discrepavam do concerto predominante de cunho protetivo-tutelarista; (4º) A nova normativa internacional sobre direitos humanos gerais e especiais geracionais (Convenção sobre os Direitos da Criança) e cumulativamente a atuação estratégica de agências e organismos das Nações Unidas e de instâncias da cooperação internacional (UNICEF, por exemplo).
Nesse período aqui analisado, desenrolou-se o trabalho na ONU de elaboração do Projeto da Convenção sobre os Direitos da Criança, que viria atualizar e dar cunho jurídico-internacional a então vigente Declaração sobre os Direitos da Criança.
Esse processo de elaboração e aprovação desse tratado internacional iniciou-se com a apresentação e discussão na ONU do chamado Projeto-Polônia (1978), a partir daí em permanente diálogo com os paradigmas éticos e políticos dos direitos humanos, isto é, de suas doutrinas embasadoras; especificamente, dos princípios jurídicos do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Em 20 de novembro de 1989, trigésimo aniversário da Declaração dos Direitos da Criança, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou por unanimidade a Convenção sobre os Direitos da Criança – CDC. A iniciativa de elaborar uma convenção internacional foi apresentada à Assembleia Geral em 1978 pela Polônia, que pretendia que a aprovação de um tratado internacional desse coincidisse com a celebração do Ano Internacional da Criança, em 1979. O anteprojeto original apresentado pela Polônia, como observaram vários governos na consulta inicial feita em 1978, consistia essencialmente em mera reformulação do já reconhecido na Declaração de 1959. A redação final da CDC, porém, transforma a criança, de objeto de direito a receber uma proteção especial, em sujeito de uma ampla gama de direitos humanos e liberdades e além do mais estabelece um Comitê Internacional de especialistas em direitos da criança, com novas competências para a promoção de tais direitos e a monitoração da realização deles. O novo essencial passou a ser a “satisfação de necessidades e desejos“, mas sob a ótica do Direito dos Direitos Humanos, mais especificamente como direitos humanos positivados (fundamentais) de crianças e adolescentes.
A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança convida a assegurar as duas prerrogativas maiores que a Família, a Comunidade, a Sociedade, o Estado e o Direito devem conferir à criança e ao adolescente, para operacionalizar a proteção dos seus direitos humanos: “cuidados” e “responsabilidades”. As crianças e os adolescentes têm direitos subjetivos e exigíveis, à liberdade, à dignidade, à integridade física, psíquica e moral, à educação, à saúde, à proteção no trabalho, à assistência social, à cultura, ao lazer, ao desporto, à habitação, a um meio ambiente de qualidade e outros direitos individuais indisponíveis, sociais, difusos e coletivos. E consequentemente se postam, como credores desses direitos, diante do Estado, da sociedade, da comunidade e da família, devedores que devem garantir esses direitos.
Não apenas como atendimento de necessidades, desejos e interesses, mas como reconhecimento e garantia de direitos humanos indivisíveis, como os qualifica a normativa internacional – e ao mesmo tempo como reconhecimento e garantia do direito a um desenvolvimento humano econômico e social em um Estado Democrático de Direito. Mas, são eles pessoas que precisam de alguém, de grupos e instituições, responsáveis pela promoção e defesa da sua “participação, proteção especial, desenvolvimento e sobrevivência”, responsáveis por seu cuidado, em especial. Em seu preâmbulo e em muitos dos seus artigos a Convenção, define os direitos da criança realmente num sentido próximo da Declaração dos Direitos da Criança, da ONU, em 1959, apenas como direito a uma proteção especial: “a criança tem necessidade de uma proteção especial e de cuidados especiais, notadamente de uma proteção jurídica, antes e depois de seus nascimentos”. Todavia, em outros pontos, a Convenção avança e acresce a esse “direito à proteção especial”, outros tipos de direitos que só podem ser exercidos pelos próprios beneficiários: o direito à liberdade de opinião (art.12), à liberdade de expressão (artigo 13), à liberdade de pensamento, de consciência e de religião (artigo 14), à liberdade de associação (art.15). Direitos que pressupõem certo grau de capacidade, de responsabilidade, isto é, que pressupõem sujeitos como titulares desses direitos.
As crianças e os adolescentes são eles próprios, seres essencialmente autônomos, mas conjunturalmente seres com capacidade limitada de exercício da sua liberdade e dos seus direitos. Responsáveis por seus atos, por sua vida – mas em nível diverso que o adulto. Todas as crianças e os adolescentes precisam de promoção e proteção integral dos seus direitos fundamentais, intrinsecamente. Mas, em determinadas circunstâncias, situações, condições, momentos, quando vulnerabilizados ou em desvantagem social, algumas crianças e alguns adolescentes exigem medidas especiais de proteção ou ações afirmativas em favor do seu direito (“discriminações positivas”). Em outras, quando em conflito com a lei penal, exigem medidas (sancionadoras) socioeducativas. As necessárias limitações ao exercício de seus direitos devem ser entendidas como estratégias para garantir a plenitude desses direitos. Isto é, limita-se a autonomia deles para assegurar a plenitude da sua cidadania e não para torná-los menos – cidadão, cidadãos de segunda classe, ainda mais marginalizados. Não se protege uma pessoa como se protege um pequeno animal feroz e perigoso ou um anjo – jaula ou altar. Não se pode esquecer que ela, de qualquer maneira, é um ser que já tem todos os direitos de um cidadão e como tal deve ser tratado; revertendo-se todo e qualquer processo que resulte no abortamento da sua cidadania! A eles há que se garantir, além do mais, sua participação proativa e não meramente reativa, na construção de sua vida, nos processos de extensão de sua cidadania. Sua participação igualmente de alguma forma no desenvolvimento dos serviços e programas/projetos públicos, administrativos e judiciais, governamentais e não governamentais, num sentido lato Deveríamos nos esforçar para “domesticar o poder”; para “funcionalizá-lo o mais adequado possível, minimizando o negativo da pura dominação e fazendo excelente a sua dimensão de integração e solidariedade” (RUSSEL, Bertrand – O Poder. 1979). A Convenção sobre os Direitos da Criança pode ser instrumento valioso de domesticação do poder castrador e tutelar. Depende isso do seu nível de realização, efetividade, na ordem internacional e nacional.
Petrópolis, novembro, 2012
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